A emergência da criação do Direito Internacional da Sustentabilidade

A sustentabilidade é, ao lado da globalização, a tendência internacional mais marcante das últimas décadas. Ela extrapola a área ambiental, mesmo que a ameaça da mudança climática tenha tornado mais clara do que nunca a interdependência das nações nessa área. Poucas preocupações são tão globais quanto assegurar a perenidade e a qualidade de vida de nossa espécie no Planeta, e essa preocupação foi acompanhada da criação de inúmeras normas e instituições internacionais e transnacionais, assim como ocorreu em outras áreas de interdependência acentuada — como a dos Direitos Humanos ou a do Comércio Internacional — que viram surgir ramos autônomos do Direito Internacional destinados a regulá-las.

Dito isso, seria possível defender a existência de um Direito Internacional da Sustentabilidade emergente que caminha, também ele, para se firmar como ramo autônomo do Direito?

Para atribuir autonomia científica a determinada área, é preciso que esta possua objeto, conceitos, regras e institutos próprios. Mais importante ainda, é necessário que nela possam ser identificados princípios específicos. São esses princípios que compõem o núcleo de um determinado sistema normativo, definindo sua razão e lógica, conferindo-lhe harmonia e coerência e condicionando a interpretação de suas regras.

Para responder à questão acima é preciso primeiro entender, portanto, se o direito que surge como resposta aos desafios relacionados à sustentabilidade, que claramente possui conceitos, normas e instituições específicos, tem também seus próprios princípios.

Destaca-se, nesse contexto, o “desenvolvimento sustentável”, que como veremos vem sendo tratado, ele mesmo, como um princípio. Sua definição mais difundida é aquela utilizada no relatório que a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou em 1987, intitulado Nosso futuro comum— também conhecido como Relatório Brundtland — segundo a qual trata-se de um desenvolvimento “que satisfaz às necessidades do presente sem comprometer a habilidade das gerações futuras de satisfazerem suas próprias necessidades”.

Logo, intrínseca ao desenvolvimento sustentável está a ideia de justiça intergeracional, relacionada à atenção com a preservação da natureza, com a escassez dos recursos naturais e com a gestão responsável dos resíduos. Esta se reflete na conhecida frase de que “não herdamos o mundo de nossos pais, mas o tomamos emprestado de nossos filhos”, e implica na fixação de uma série de outros princípios correlatos, como aqueles da prevenção, da precaução e do poluidor-pagador.

Essa preocupação deve levar em conta, segundo outro conceito muito repetido, ao menos três dimensões que são indissociáveis: a ambiental, a social e a econômica. Esse tripé procura refletir a complexidade da sustentabilidade, que abrange não apenas a preservação do meio ambiente, mas também aspectos de justiça social, desenvolvimento econômico, valorização da cultura, da educação e da ética, entre outros que compõem o quadro necessário ao desenvolvimento das capacidades e ampliação das liberdades de cada indivíduo, melhorando o bem estar da humanidade como um todo.

Assegurar esse quadro é o objeto do Direito Internacional da Sustentabilidade e, para poder alcançá-lo, vem se construindo, ao longo dos anos, um sistema jurídico próprio. Este surge não apenas por meio de iniciativas públicas das mais diversas instâncias do Estado ou das organizações interestatais — no âmbito da ONU, por exemplo, se o comércio internacional conta com a atuação normativa da UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law), o desenvolvimento sustentável conta com a ação do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Ao contrário, sua construção recebe grande contribuição dos atores privados da sociedade global, muitos deles transnacionais, como as organizações não-governamentais (ONGs) e empresas.

É da atividade desses atores — fundamental, ao lado daquela dos Estados e das organizações internacionais, para a governança global da sustentabilidade que é, de fato, descentralizada — que muitas vezes surgem e ganham corpo princípios como o do comércio justo (fair trade), conceitos como a responsabilidade social corporativa, normas e certificações como as da ISO 14.001 e do Forest Stewardship Council (FSC), indicadores e diretrizes como os fornecidos pelo Instituto Ethos, pela Global Reporting Initiative (GRI), pela Câmara de Comércio Internacional de Paris (CCI) em sua Carta de Negócios para o Desenvolvimento Sustentável e pelo Pacto Global que, embora seja uma iniciativa da ONU, reúne mais de 5,2 mil entidades da iniciativa privada em torno de dez princípios nas áreas de direitos humanos, relações de trabalho, meio ambiente e combate à corrupção. Essa atividade transnacional é essencial para o florescimento do Direito Internacional da Sustentabilidade — em uma contribuição muito parecida àquela que os atores privados deram à formação do Direito do Comércio Internacional, por meio do desenvolvimento da lex mercatoria.

Concentraremos-nos aqui, contudo, por uma questão de espaço, no âmbito interestatal de produção desse novo direito, focando nos acordos e na jurisprudência internacional — notadamente naqueles que caracterizam o desenvolvimento sustentável, de forma mais ampla, como princípio hoje incontornável.

Podemos dividir esses acordos em três categorias.

Na primeira, destacam-se as grandes conferências internacionais realizadas pela ONU para cuidar do tema, cujas declarações finais muitas vezes elencam princípios e reafirmam que o desenvolvimento sustentável é um objetivo que os países devem perseguir.

Esse é o caso da Declaração da Conferência de Estocolmo de 1972, que estabelece em seu Princípio de número 13 a obrigação de assegurar que o desenvolvimento seja compatível com a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente para benefício da população. Ou a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no âmbito da conferência conhecida como Rio 92 — que gerou outros importantes instrumentos internacionais, como a Agenda 21e a Convenção do Clima, que também fazem alusão a esse objetivo — cujo Princípio três dispõe que as necessidades de desenvolvimento e as ambientais das gerações presentes e futuras devem ser preenchidas de forma equilibrada.

O mesmo se repete na Declaração da Conferência de Johanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável de 2002, cujo item 16 prevê que o desenvolvimento sustentável é um objetivo comum dos países participantes, e daquela da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentávelde 2012 — a chamada Rio+20 —, intitulada “O Futuro que Queremos”, que em seu artigo 1º renova a obrigação de garantir um futuro econômica, social e ambientalmente sustentável para nosso planeta e para as gerações presentes e futuras.

Uma segunda categoria é a dos acordos que abordam aspectos significativos da sustentabilidade — problemas globais que dependem da cooperação internacional para serem tratados de forma efetiva, como a defesa dos direitos humanos, a garantia de condições satisfatórias de trabalho, a defesa da ética e a condenação da corrupção, a preservação de diferentes ecossistemas e o controle de diversos tipos de poluição.

Fazem parte dessa categoria a Declaração Universal dos Direitos Humanosde 1948, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Marde 1982, aDeclaração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalhode 1998, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção de 2005 — isso sem falar nos mais de 250 acordos ambientais multilaterais em vigor que acrescentam novas regras, instituições e princípios ao amplo sistema normativo destinado à promoção da sustentabilidade.

Por fim, é interessante comentar também instrumentos sobre assuntos que, em princípio, não estão relacionados à sustentabilidade, mas nos quais se assume claro compromisso com o desenvolvimento sustentável.

Isso ocorre, por exemplo, no âmbito dos processos de integração regional, ou nos acordos de livre comércio.

É o caso do Tratado de Assunção, de 1991, que constituiu o Mercosul. Este dispõe, em seu preâmbulo, que os países do bloco devem acelerar os processos de desenvolvimento econômico com justiça social e que os recursos disponíveis devem ser aproveitados de forma mais eficaz e o meio ambiente deve ser preservado.  Esse espírito se encontra também noTratado Constitutivo da União de Nações Sul-americanas (UNASUL), de 2008, que afirma que a integração da região deverá se fundar, entre outros “princípios basilares”, na “harmonia com a natureza para um desenvolvimento sustentável”.

A União Europeia (UE) também adota, em diversos de seus instrumentos, o desenvolvimento sustentável como princípio. A versão consolidada do Tratado da União Europeia estabelece, em seu preâmbulo, que os países membros estão “determinados a promover o progresso econômico e social de seus povos, levando em consideração o princípio do desenvolvimento sustentável”, e em seu artigo 21, alínea “f”, a necessidade de preservar e melhorar a qualidade do ambiente e a gestão dos recursos naturais globais, a fim de garantir o desenvolvimento sustentável. Também a versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, em seu artigo 11, estabelece que, para que o desenvolvimento sustentável seja alcançado, os requisitos de proteção ambiental devem ser integrados na definição e implementação das políticas e atividades da UE.

Porém, a obrigação de respeitar esse princípio extrapola o âmbito desses processos mais tradicionais de integração regional, estendendo-se, também, aos inúmeros acordos plurilaterais e bilaterais de livre comércio que vêm sendo firmados nos últimos anos.

Por exemplo, o Acordo de Livre Comércio entre MERCOSUL e Egito, de 2010, afirma em sua parte introdutória que um de seus objetivos é criar condições mais favoráveis para o desenvolvimento sustentável. E o Acordo de Livre Comércio entre UE, Colômbia e Peru de 2012 dispõe, em seu preâmbulo e em seu artigo 267.1 que o acordo deve ser implementado conforme o objetivo do desenvolvimento sustentável e que as partes se comprometem com o bem-estar dos presentes e futuras gerações.

Por último, ainda nessa categoria, deve se mencionar o caso da Organização Mundial do Comércio (OMC). O preâmbulo do Acordo Constitutivo da OMC, de 1995, reconhece expressamente que a expansão da produção e o comércio de bens e serviços devem ocorrer “possibilitando, enquanto isso, o uso ótimo dos recursos mundiais de acordo com o objetivo do desenvolvimento sustentável”.

Vale lembrar que o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade)— acordo de 1947 incorporado ao arcabouço jurídico da OMC —, estabelece em seu artigo XX que algumas medidas relacionadas à sustentabilidade, como aquelas destinadas à proteção da vida e saúde humanas e à conservação de recursos naturais não renováveis, podem representar exceções ao dever geral dos países membros de permitir o livre comércio.

Assim, como foi possível perceber, diversas dimensões da sustentabilidade são objeto de documentos internacionais e o desenvolvimento sustentável, por si só, é visto como um princípio e um objetivo a ser perseguido pela comunidade internacional.

Entretanto, a maior parte dessas declarações e acordos internacionais não prevê sanções caso suas disposições sejam desobedecidas. Embora configure claro dever moral dos Estados, o que acontece quando estes últimos deixam de honrar a sua obrigação de respeitar o princípio do desenvolvimento sustentável?

Para responder essa pergunta, é preciso analisar a — infelizmente pouca — jurisprudência de tribunais internacionais nessa matéria.

Nos ateremos a apenas dois casos.

No primeiro, conhecido como caso Gabcikovo-Nagymaros,a Corte Internacional de Justiça (CIJ) adotou o desenvolvimento sustentável como base para sua sentença de 1997. Nesta, foi registrado que o homem não parou, ao longo das eras, de intervir na natureza, frequentemente sem considerar os efeitos disso, mas que, com as novas perspectivas apresentadas pela ciência quanto aos riscos que essas intervenções a um ritmo impensado representariam para a humanidade, os Estados precisam agora começar a considerar as normas de proteção ambiental enunciadas em um grande número de instrumentos. Para a CIJ a ideia de desenvolvimento sustentável deve servir para conciliar desenvolvimento econômico e proteção ambiental e, neste julgamento em particular, não serviu apenas como um conceito abstrato, mas como um princípio de valor normativo indissociável do direito internacional moderno.

O outro exemplo que vale a pena mencionar é o do caso “shrimp-turtle”, no qual o Órgão de Apelação da OMC afirmou, em sua decisão de 1998, que a linguagem utilizada no preâmbulo do acordo constitutivo, estabelecendo o desenvolvimento sustentável como objetivo, reflete a intenção dos negociadores e deve acrescentar “cor, textura e contraste” à leitura dos demais acordos daquela organização, e que o artigo XX do GATT “deve ser interpretado à luz das preocupações contemporâneas da comunidade das nações sobre a proteção e conservação do meio ambiente”.

Caso se consolide como tendência o entendimento pelos tribunais internacionais de que o princípio do desenvolvimento sustentável deve ser respeitado, práticas dos Estados contrárias a esse princípio poderiam ser passíveis de litígio nessas jurisdições. Esse entendimento, inclusive, pode vir a se firmar não apenas por se constatar que desenvolvimento sustentável está consagrado em convenções internacionais — ou, ao menos, por considerá-lo como “princípio geral do direito reconhecido pelas nações civilizadas”, na terminologia do artigo 38 do Estatuto da CIJ—, mas pela via dos costumes, uma vez que a observância reiterada pelos Estados das práticas relacionadas à sustentabilidade e a consciência de sua obrigatoriedade (opinio juris) podem fazer com que essas se cristalizem em regras de natureza costumeira.

Uma evolução nesse sentido permitiria aumentar o poder coercitivo do Direito Internacional da Sustentabilidade, mesmo quando não existir sanção pelo descumprimento das diretrizes a ele relacionado — ou seja, mesmo que estas, por seu caráter muitas vezes não vinculante, configurem aquilo que alguns denominam “soft law”.

Como se viu aqui, a consciência crescente de nossos desafios socioambientais tem levado à emergência de um sistema com objeto, conceitos, normas, instituições e princípios próprios, voltado a reverter a situação atual que também é — em outro sentido — de emergência. A consolidação do Direito Internacional da Sustentabilidade como ramo autônomo ainda tem pela frente um longo caminho. É um caminho, no entanto, que a humanidade precisa percorrer, e com pressa, a fim de assegurar seu próprio futuro na Terra.

 Fonte: ConJur