Compliance concorrencial deve ser a lição positiva da “lava jato”

Todas as áreas empresariais suscetíveis de regulação podem ter programas de compliance. No que tange à área concorrencial, tais programas surgiram, voluntariamente nos Estados Unidos, nos anos 40 do século XX. Inicialmente reproduzidos na Europa, começaram a se espraiar pelo mundo há cerca de 20 anos, fruto do impacto do julgamento de dois casos de cartel, o das lisinas e o das vitaminas, que levaram a investigação antitruste a países longínquos como o Japão e resultaram em multas, ressarcimento de danos e penas de prisão. Os programas em questão continuam a aumentar em número e complexidade pelo incremento do desafio concorrencial em um planeta em crescente globalização.

O fundamento jurídico dos programas em questão nos Estados Unidos repousa, no Chapter Eight of the United States Sentencing Guidelines,  datados de 1991, emendados em 2004 e em novembro de 2014. A partir de 2004, o programa passou a ser denominado “Programa de Compliance e Ética”, tendo seus requisitos tornado-se mais estritos, assim se tendo mantido em 2014.  Em suma, os requisitos mínimos são: efetividade do programa; supervisão e responsabilidade por executivo de alto nível da empresa; delegação operacional proibida a empregados cujos antecedentes não os recomendem; regras claras e tornadas de conhecimento geral dos empregados da empresa; recursos e medidas que possibilitem efetivo cumprimento do programa, com relatórios periódicos e auditorias; avaliações periódicas; criação de mecanismos disciplinares específicos, incentivadores do cumprimento dos objetivos; proteção do anonimato e da confidencialidade, relativamente aos relatos ou busca de informações por parte de empregados; e providências cabíveis a serem tomadas em caso de ocorrência de infração.

Os tribunais da União Europeia, devido à grande inteiração comercial com empresas norte-americanas vem sufragando princípios semelhantes aos norte-americanos acima expostos.

Os organismos internacionais que se preocupam com concorrência — Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e International Competition Network (ICN) vem estudando, há tempos, a  questão do cumprimento das regras antitruste e fazendo publicações a respeito, que, contudo não podem ser consideradas diretrizes oficiais sobre programas de compliance, propriamente ditos. Nesse mesmo diapasão, vale mencionar o The ICC Antitrust Compliance Toolkit, dado à luz pela Câmara Internacional de Comércio, em 2013.

compliance concorrencial foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Portaria SDE 14/2004, que estabeleceu o “Programa de Prevenção de Infrações à Ordem Econômica (PPI)”, que embora tendo seguido precedentes norte-americanos e europeus, inovou ao prever a concessão de Certificado de Depósito de PPI, de que poderia derivar a atenuação de eventuais penalidades, atenuação essa afastada, posteriormente, pela Portaria SDE 48/2009. A ampliação da envergadura do instituto deu-se, no entanto, pela vigente Lei 12.529, de 2011, que além de instituir o regime de análise prévia, propiciou a utilização do compliance no âmbito das condutas anticompetitivas, das condutas unilaterais e das concentrações; mormente por ocasião de celebração de Acordos em Controle de Concentração (ACC), Termos de Compromisso de Cessação e Prática (TCC) e Acordo de leniência.  Além de precedentes jurisprudenciais em prol de programa de compliance[1], nota-se por parte do Cade afã em facilitar tal programa e em difundi-lo, por ter incluído essa preocupação no Plano Estratégico de 2013/2016 e no Plano Plurianual (2012/2015). Ademais, o presidente do Cade, professor Vinicius Marques de Carvalho, em entrevista recente, além de discorrer sobre os requisitos de um efetivo e proveitoso Programa de Compliance, sugeriu a realização de pesquisas teórico-práticas que incentivem o debate e forneçam subsídios para um anteprojeto de diretrizes a ser discutido e aprovado pelo Cade.

Um programa de compliance faz com que, tanto os dirigentes, quanto os empregados de uma empresa, tenham conhecimento e sejam capazes de agir em conformidade com a lei antitruste, buscando a prevenção ou a descoberta precoce de eventuais ilegalidades praticadas. Tais programas vem demonstrando, na prática, aptidão para minorar a ocorrência de infrações concorrenciais e descobrir, o mais cedo possível as que se demonstram inevitáveis. A precocidade na detecção tem favorecido a utilização voluntária de programas de leniência com a consequente diminuição das penalidades impostas. Seu formato varia em consonância com as características de cada empresa, embora haja a tendência de se seguir os princípios básicos fixados pelos países pioneiros em sua utilização, bem como diretrizes governamentais específicas, porventura existentes no respectivo país. Estados há que regulamentam programas de advocacia preventiva visando compliance, para promover a cultura da competição no seio das empresas e da sociedade como um todo. A redução da pena funciona como incentivo para a adoção de medidas que desfavoreçam o comportamento anticompetitivo.

A ferramenta básica é um manual, explanando, de maneira simples e em termos leigos as condutas permitidas e proibidas pela lei concorrencial e suas implicações legais. A adoção de um código de conduta por parte de uma empresa é um meio pelo qual a alta direção comprova seu engajamento para com as regras antitrustes e transmite esse ideário para toda a estrutura corporativa, ao mesmo tempo incentivando o cumprimento e desencorajando o descumprimento. Por tal razão, uma declaração de policydeve encabeçar o manual que conterá, via de regra: escopo; diretrizes quanto ao prazo de conservação de documentos; relação com os competidores; fixação de preço; troca de informações em geral e sobre preços; divisão de mercados; recusa em negociar; associações comerciais; relação com os clientes, abrangendo: discriminação de preço, restrições territoriais, acordos casados, reclamação de distribuidores, relações com os distribuidores, terminação de contrato de distribuição etc. O código em que a empresa declara seu cometimento com as regras concorrenciais, em que se delineiam os objetivos a serem alcançados e se descrevem os procedimentos necessários para tanto. Em resumo, o que se pode e o que não se pode fazer. É indispensável que um programa de treinamento regular seja implantado.

Quanto maior for as empresa, maior deverá ser o empenho com a feitura de manuais diferenciados, a serem distribuídos pelos segmentos da empresa e a realização de seminários ou sessões de instrução adaptados ao nível dos ouvintes. O programa, inicialmente, deve-se revestir de simplicidade, sofisticando-se com o tempo, embora nunca programa dessa espécie possa ser considerado perfeito e acabado. Sua continuidade não implica em transformar a empresa em escola, nem o treinamento tem em mira formar especialistas. O esboço de código deve ser discutido antes de ser lançado. Os programas devem ser positivos, não podendo contribuir para gerar desconfiança ou estabelecer ambiente de denuncismo entre diretores e empregados. Bom fecho para as considerações sobre o programa em si são as recomendações de Spratling, de que um bom programa de compliancedeve ser “reasonably designed, implemented and enforced”; e de Kraviec, de que um programa efetivo deve “prevent and detect violation of law”.

Nos Estados Unidos, já pertencem ao passado, tanto a utilização pelas empresas dos programas tradicionais genéricos, quanto o oferecimento por parte de escritórios de advocacia de programas de online competition compliance. Os primeiros vem sendo substituídos por programas especificamente preparados, levando em conta a estrutura interna da empresa,  as características estruturais do mercado, o risco antitruste do setor em que opera, seu posicionamento em tal segmento, sua história concorrencial pregressa e os países em que atua. A simplicidade dos programas tradicionais vem dando lugar a alentados manuais e o respectivo treinamento vem sendo auxiliado por programas eletrônicos, simulação de busca e apreensão etc.

Deve-se tirar lições positivas, mesmo de acontecimentos negativos. Dos aspectos antitruste da operação “lava jato”, evidenciada por delação premiada e ainda em instrução pelo Cade, um corolário positivo será o esforço coletivo, das autoridades concorrenciais e das empresas, no sentido de se aumentar a utilização de programas de compliance, que se existentes e efetivos teriam podido evitar ou minimizar o problema.


[1] Previsão de negociar programa de compliance: Ato de Concentração 0877.009924/2013-19, requerido por Innova  S. A. e Videolar S. A .

Obrigação de adotar programa de compliance para incentivar regras internas de prevenção de infrações concorrenciais: Processos Administrativos 08012.002493/2005-16, requerido pela JBS S. A.; e 08012.011142/2006-79, por Lafarge Brasil S. A.

Aprovação de termo de compromisso de desempenho sob condição de instituição de programa de compliance:

Ato de Concentração 08012.002148/2008-17, Campo Limpo.

 

Fonte: Conjur