Almir Pazzianotto: Excesso de demagogia posterga reforma trabalhista há mais de 30 anos

O ex-ministro do Trabalho Almir Pazzianotto Pinto publicou dois artigos no jornal Estado de S.Paulo, no qual analisa a última edição do Relatório Geral elaborado pelo TST, revelando que, se comparado ao primeiro, provoca sensações opostas: “reforça a convicção de que a Justiça do Trabalho é operosa e célere, porém revela que as relações de trabalho estão contaminadas por letal vírus da litigiosidade“.

Com base neste estudo, o ex-presidente do TST elenca transformações sofridas ao longo dos anos e aponta falhas, concluindo que, por excesso de demagogia, a reforma trabalhista é postergada há mais de 30 anos e não parece que será levada a efeito, “quando é tão necessária”.

“O desemprego se alastra com enorme velocidade; nem por isso, porém, se mostra capaz de sensibilizar o Planalto.”

Confira na íntegra.

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Relatório anual do TST

22 Agosto 2015 – O Estado de S. Paulo

O primeiro Relatório Geral elaborado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) que conheço se refere a 1967 e traz informações referentes ao quinquênio 1963-1967. Colocado ao lado do último, alusivo a 2014, provoca sensações opostas: reforça a convicção de que a Justiça do Trabalho é operosa e célere, porém revela que as relações de trabalho estão contaminadas por letal vírus da litigiosidade.

Contratar empregado converteu-se em aventura de alto risco, dominada pela insegurança jurídica responsável pelo fenômeno do “passivo oculto”.

Construí a carreira em sindicatos de trabalhadores. De 1961, quando me inscrevi na OAB, até 1983, ao me afastar da advocacia para assumir a Secretaria do Trabalho do governo Montoro, trabalhei em diversas entidades sindicais, das menores às maiores, dos setores têxtil, metalúrgico, químico-farmacêutico.

Admiro a Justiça do Trabalho, cuja intimidade conheci quando ministro no Tribunal Superior do Trabalho e ao exercer a corregedoria-geral, a vice-presidência e a presidência. Move-me, nesta análise, o desejo de propor caminhos para a redução do avassalador número de demandas, com medidas que, sem afetar os assalariados, revigorem o mercado de trabalho.

O relatório de 1967 nos mostrava a Justiça do Trabalho pequena, mal instalada, integrada por homens de sólida cultura jurídica, a exemplo de Hildebrando Bisaglia, Lima Teixeira, Arnaldo Sussekind, Raimundo Souza Moura.

Em São Paulo, poucas Juntas de Conciliação e Julgamento e reduzido Tribunal Regional do Trabalho (TRT) se espremiam em prédio da Rua Rego Freitas. No Rio de Janeiro – à época capital da República -, o TST, o TRT, e o Ministério do Trabalho conviviam no mesmo edifício. A situação era pior nos demais Estados. A falta de instalações adequadas afetava a imagem e o funcionamento da Justiça, cuja integração ao Poder Judiciário fora determinada na Constituição de 1946.

Segundo o Relatório Geral de 1967, no período de cinco anos a Justiça do Trabalho recebeu, nas Juntas das antigas oito regiões, 1,5 milhão de processos, julgados quase na mesma quantidade. Os tribunais regionais receberam 91 mil e o TST, 45 mil. No total deram entrada, nas três instâncias, 1,669 milhão, sendo julgados 1,604 milhão. Consideradas as condições de desenvolvimento em que o Brasil se achava, os números já eram preocupantes; longe estavam, entretanto, do que hoje nos mostram relatórios anuais divulgados pelo TST.

Limito-me a alguns dados contidos no documento alusivo a 2014, cuja consulta é possível acessando o site do tribunal.

Já não temos oito tribunais regionais, mas 24. São Paulo tem dois e os demais Estados e o Distrito Federal, um cada, com exceção de Acre, Roraima, Amapá e Tocantins. São, no total, 3.027 juízes para as 1.537 Varas do Trabalho distribuídas por 626 municípios, cuja jurisdição abrange todo o território nacional. É de 520 o número de desembargadores e são 27 os ministros do TST. Entre 2006 e 2014 deram entrada no primeiro grau 18.836.889 feitos, ou seja, em média acima de 2 milhões por ano. São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro recebem o maior número de processos. No extremo oposto encontramos Acre, Tocantins, e Roraima, com menos de 0,5%.

As matérias mais comuns referem-se a horas extras, aviso prévio, intervalos intra e interjornadas, FGTS, danos morais.

Despertam atenção os valores pagos a reclamantes. Em 2011, R$ 14.758 bilhões; em 2012, R$ 18.632; em 2013, R$ 24.248, em 2014, R$ 16.322, no total, em apenas quatro anos, de quase R$ 74 bilhões.

Não questiono se resultaram de condenações justas ou injustas, equilibradas ou exageradas. De qualquer modo, são quantias vultosas, que reforçam a convicção de que o Brasil, em cenário global caracterizado pela extrema competitividade, é palco de intermináveis conflitos entre empregados e empregadores, um dos muitos responsáveis pelo elevado custo final de produtos e serviços.

No rol de entidades e sociedades com maior número de processos em tramitação encontramos órgãos da administração direta federal, estadual e municipal, estatais, sociedades de economia mista, multinacionais, instituições financeiras, grupos econômicos, médias, pequenas e microempresas, fundações, instituições culturais, recreativas e filantrópicas, sem fins lucrativos, e pessoas físicas, tratados com igual rigor por legislação uniforme e míope, que lhes ignora substantivas diferenças.

Uma das razões está na introdução à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ali se acham as definições de empregado, empregador e grupo econômico. Lá encontramos, também, o princípio do contrato realidade, fundado na falsa ideia de que todo trabalhador adulto é hipossuficiente, vítima de desenvolvimento mental retardado, situação que lhe assegura tutela vitalícia do Estado em assuntos relacionados ao contrato de trabalho. Aos 18 anos torna-se capaz de direitos e obrigações para os atos da vida civil, exceto, porém, no que se refere à condição de empregado.

Independentemente do que se pense, a crise e o desemprego se agravam, alimentados por fatores externos sobre os quais o País não exerce controle, e pela força inercial interna, que preserva arcaica legislação trabalhista e protege a estrutura sindical enraizada na Carta Del Lavoro.

Passam-se décadas e a cansativa rotina vivida por magistrados, servidores e tribunais não garante segurança jurídica às relações entre patrões e empregados. O “passivo oculto”, por exemplo, terror dos empregadores, acaba de ser engordado mediante combinação de julgados do Supremo Tribunal Federal e do TST, que elevou em 36%, com efeito retroativo, o índice de correção monetária.

“No Brasil até o passado é imprevisível.” Os empregadores sabem como é real a frase do ex-ministro Pedro Malan.

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Relatório anual do TST – II

24 Setembro 2015 – O Estado de S. Paulo

O Relatório do Tribunal Superior do Trabalho (TST), sucintamente examinado na edição de 22/8/2015, apesar de minucioso, é falho em relevantes aspectos. O primeiro consiste na ausência de preocupação com a análise da crise que ataca as relações de trabalho, refletida nos números trazidos pelo documento.

Basta, nesse sentido, considerar a quantidade de reclamações individuais no período compreendido entre 2006 e 2014, acima de 18,5 milhões. Com o acervo de dados de que dispõe, a Justiça do Trabalho poderia oferecer valiosa contribuição para a redução de demandas. O documento ignora o número de reclamantes. São comuns causas com dezenas de interessados, substituídos pelo respectivo sindicato da categoria, ou representados pelo Ministério Público do Trabalho. Não afasto a hipótese de haver, no País, mais reclamantes do que habitantes.

A partir dessa informação é que estaríamos aptos a avaliar o clima de insegurança jurídica que afeta o mercado de trabalho e se tornou um dos responsáveis pela desindustrialização, pela fuga de investimentos, pela perda de competitividade, pelo elevado desemprego.

O detalhado relatório desconhece a quantidade de ações ajuizadas por empregados desligados sem justa causa, aos quais foram pagos os direitos decorrentes da demissão injusta. Embora tenham assinado recibo final, sob a assistência do sindicato ou da autoridade local do Ministério do Trabalho e Emprego, ingressaram em juízo para reivindicar diferenças ou pagamentos a títulos diversos, como horas extras e dano moral.

O leitor desacostumado deste assunto certamente indagará o que induz milhões de empregados e ex-empregados a bater ininterruptamente às portas do Judiciário Trabalhista após darem quitação ao patrão, cientes de que a demora média, do início da causa ao encerramento da execução, ultrapassa cinco anos.

A resposta é porque nada têm a perder. Postular na Justiça do Trabalho é rápido, simples, gratuito e seguro. A reclamação, segundo prescreve o artigo 840 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), poderá ser oral ou escrita. Se escrita, requer breve exposição dos fatos, o pedido, data e assinatura do reclamante ou do representante. A lei dispensa fundamentação jurídica. Advogados não faltam em busca de clientes. Não há custas em caso de insucesso total ou parcial. O autor normalmente será beneficiado pela isenção, mesmo se não for realmente pobre. A Justiça, gratuita para ele, é mantida com recursos dos contribuintes.

Os prazos estão longe de ser reduzidos. No TST o processo aguarda julgamento em média durante um ano, um mês e 23 dias. Nos Tribunais Regionais, cerca de oito meses. Nas Varas do Trabalho, desde o início até se encerrar a execução da sentença, cinco anos e 11 meses. Conheço causas em andamento há mais de dez anos.

São elevadas as taxas de reforma da decisão. Na 17.ª Região (Espírito Santo) a porcentagem de sentenças modificadas pelo Tribunal Regional alcançou 57,18%. Na 20.ª (Sergipe), 53,43%. Na 1.ª Região (Rio de Janeiro), 46,39%. Na 10.ª (Brasília), ficou em 28,04%. São de assustar os números relativos ao TST, onde o Ceará é campeão em acórdãos reformados em recurso de revista, os quais atingem o fantástico patamar de 82,63%.

Grave falha decorre da ausência de informações acerca do direito coletivo. Não há uma única linha sobre a matéria. O poder normativo, exercido para pôr termo a disputas de natureza econômica entre empresas e sindicatos profissionais, ou de natureza intersindical, apareceu na Carta Constitucional de 1937, com o artigo 139 copiado do modelo corporativo-fascista italiano. A Justiça do Trabalho esbanjou a utilização da prerrogativa de interferir nas relações coletivas de trabalho, produzindo enorme quantidade de normas, como se observa na relação de precedentes normativos aprovados pelo TST.

Essa permanente intervenção é uma das razões do malogro das negociações diretas. Ao sindicato resulta mais simples recorrer à tutela judicial do que se empenhar na discussão de cláusulas coletivas. A Súmula n.º 277 determina a incorporação definitiva de normas temporárias e não renovadas a contratos individuais de trabalho em vigor. Para que se empenhar em negociações, se a sobrevivência de dispositivos mortos está garantida pela jurisprudência?

A derradeira observação diz respeito às dívidas da administração pública consolidadas em precatórios. À fl. 111 do relatório encontra-se esta informação: “Em dezembro de 2014, a dívida trabalhista em precatórios totalizava R$ 11.920.152.173,82; havia 70.633 precatórios pendentes de quitação, dos quais 41.192 (58,32%) estavam com prazo vencido. Não houve variação porcentual significativa dos precatórios pendentes de quitação em relação a 2013”. O espantoso volume de dinheiro é ininterruptamente corrigido, agora com a aplicação do IPCA-E, que, por decisão do TST, substituiu o TR anteriormente utilizado. Aos precatórios se somam 2.825.610 sentenças líquidas que, em 2014, permaneciam à espera de execução. Se imaginarmos o valor médio de R$ 25.000,00 por sentença, o débito pendente, em números redondos, seria de R$ 70,6 bilhões.

Sem discutir o erro cometido na mudança do índice de correção, o fato é que a Administração Pública, dos três Poderes da União, Estados, municípios, e todos os devedores da esfera privada, tiveram as dívidas trabalhistas elevadas, segundo alguns estudos, em 30%, no momento em que são vítimas da recessão e lutam contra a escassez de dinheiro e restrição do crédito.

Por excesso de demagogia a reforma trabalhista é postergada há mais de 30 anos. Teria a presidente Dilma lucidez para levá-la a efeito, quando é tão necessária? Não acredito. O desemprego se alastra com enorme velocidade; nem isso, porém, se mostra capaz de sensibilizar o Planalto.