As deserções nos Juizados Especiais Cíveis
Márcio Aguiar
Deserção sem complementação: A emboscada processual que mata o duplo grau de jurisdição.
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
Talvez eu escreva ‘com o fígado’ aqui neste artigo, mas o que chamo de ‘princípio da emboscada processual’ – a multiplicação de deserções por vícios formais – tem deixado o sistema processual à beira do descontrole.
O fato, hoje incontestável, já com algumas vozes mais elevadas e roucas, é de que essa prática converte minúcias em sentenças e transforma a tecnologia e os procedimentos administrativos em instrumentos de exclusão, quando deveriam ser meios de inclusão. É importante reverter esse quadro, independentemente da via, seja ela interpretativa, administrativa e/ou legislativa, para que a celeridade não se sobreponha às garantias constitucionais, como vem acontecendo.
Mais relevante que o enunciado 80 do FONAJE é a prática corrente, tecnocrática e por vezes automatizada de declarar deserção do recurso inominado sem oportunizar a complementação do preparo. Essa prática configura o que aqui denomino de “princípio da emboscada processual”: minúcias materiais transformadas em armadilhas que privam o jurisdicionado do contraditório, da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição. Celeridade é desejável, sempre, mas é princípio instrumental. Daí a ideia óbvia de que nunca se pode legitimar dois pesos e duas medidas nem erigir barreiras ao acesso à Justiça.
O nó real: Deserção sem direito de complementação
A lei 9.099/1995 (art. 42, §1º) fixa 48 horas para o recolhimento do preparo; o CPC/15 (art. 1.007, §2º) prevê, no rito comum, possibilidade de intimação para complementação. O problema surge quando, no rito especial, se declara a deserção sem oportunizar qualquer regularização. Pequenas diferenças, guias divergentes, falhas de sistema, erros materiais e, em regra, sanáveis tornam-se causas de extinção recursal. Essa transformação de equívocos em sentença prévia é a essência da emboscada processual: uma armadilha, em muitos casos, que embora feita de centavos, derruba o direito de recorrer.
Hierarquia de princípios: Por que a celeridade não decide sozinha(?)
A celeridade é princípio constitucional e valor instrumental (art. 5º, LXXVIII), porém não ocupa o mesmo plano normativo das garantias fundamentais (arts. 5º, LIV e LV; art. 5º, XXXV). Quando há colisão, a valoração se faz pelos critérios de compatibilização e proporcionalidade: devem predominar as garantias constitucionais essenciais (ampla defesa, contraditório e acesso ao duplo grau). Em termos práticos: celeridade não pode invalidar o recurso quando a aplicação da regra processual implica violação dessas garantias.
Quem “pesa mais” na balança?
A resposta, permitam-me e perdoem-me a soberba analítica, é muito óbvia. Claramente os princípios constitucionais que asseguram direitos fundamentais têm primazia sobre princípios instrumentais administrativos. Assim, o dever de proteger o duplo grau e o contraditório “pesa mais” que o imperativo administrativo de acelerar o trâmite.
Fundamento processual e coerência sistêmica: Subsidiariedade do CPC
A aplicação supletiva do CPC aos Juizados não é extravagância hermenêutica, mas exigência de coerência normativa. O art. 1.007, §2º do CPC – intimação para complementação do preparo quando o vício for sanável – responde exatamente à necessidade de evitar que formalismos mutilantes anulem recursos. Aceita-se supletividade em tutela antecipada, contagem de prazos e admissibilidade de agravo; negar-se-ia razão ao mesmo tratamento no preparo recursal por mera conveniência de celeridade?
A tecnologia como instrumento ou como carrasco processual
A digitalização e a automação devem ampliar a justiça; quando não são desenhadas com critérios de equidade, transformam algoritmos em carrascos. Sistemas que disparam declarações automáticas de deserção sem distinguir vício material de má-fé convertem rapidez em crueldade. A tecnologia precisa conter mecanismos de retificação célere: alertas, janelas eletrônicas para complementação e comprovantes únicos que permitam correção sem atropelo do direito.
Jurisprudência, uniformização e a via preventiva
Decisões do STJ e de turmas recursais têm relativizado deserção automática, impondo intimação para complementar o preparo (vedete: AREsp 2.638.376/MG; REsp 1.996.415/MG; REsp 1.818.661/RS). A admissão de pedido de uniformização pelo TJ/SP, com suspensão de feitos e tese submetida: “Preparo recursal nos Juizados Especiais – não recolhimento ou recolhimento insuficiente – possibilidade de aplicação subsidiária do art. 1.007 do CPC” – é medida prudente e constitucionalmente necessária para estancar a emboscada.
Teste da proporcionalidade como bússola decisória
Qualquer solução que restrinja direitos deve satisfazer adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Declarar deserção automática por erro mínimo falha nesse crivo: não é adequada nem necessária à celeridade que impõe prejuízo desproporcional ao direito de defesa.
Concluo com um apelo – Até quando?
O verdadeiro risco ao microssistema dos Juizados não é apenas um enunciado: é a prática que converte minúcias em sentença final. O princípio da emboscada processual deve ser desarticulado por interpretação conforme a Constituição, por uniformização judicial, por ajuste administrativo e por legislação clara. Restaurar a simetria entre forma e substância, de modo que a rapidez esteja sempre ao serviço da justiça, e não de sua frustração, é obrigação republicana.
Velocidade sem justiça é mero espetáculo; técnica sem equidade é violência institucional. Não podemos permitir que a celeridade, legítima enquanto ferramenta, se transforme em fundamento para o sacrifício das garantias constitucionais. Romper a emboscada processual é reafirmar que o processo existe para realizar direitos, não para fabricá-los em função de formalismos. A opção clara e obrigatória é proteger o duplo grau, garantir a oportunidade de complementação e usar a tecnologia para ampliar, não para extinguir o acesso à Justiça.

Márcio Aguiar
Sócio Fundador da Corbo, Aguiar & Waise Advogados. Especialista em Direito Empresarial. Ex-Diretor Jurídico da Câmara de Comércio Luso Brasileira. Co-Autor da Enciclopédia de Direito do Desporto.
Fonte: Migalhas link: https://www.migalhas.com.br/depeso/445041/as-desercoes-nos-juizados-especiais-civeis
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