Há já algum tempo que o Poder Judiciário brasileiro vem identificando casos de litigância abusiva, e o tema tem sido objeto de bastante reflexão. A matéria já é, inclusive, objeto de uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (Recomendação 159/2024), e tem chamado a atenção também da doutrina. O objetivo deste texto é apresentar duas breves considerações: a primeira, buscando identificar a litigância abusiva, distinguindo-a da litigância de má-fé e da litigância de massa. A segunda, para falar de possíveis sanções aplicáveis nos casos em que se identifica a prática desse ilícito.
Pois em primeiro lugar, é preciso determinar o que se entende por litigância abusiva. E para isso é preciso entender que ela tem duas características fundamentais: ela é, ao mesmo tempo, uma litigância repetitiva e ilícita. Explique-se melhor o que se quer dizer: há casos de litigância individual ilícita. É o que se tem quando em um determinado processo uma das partes pratica algum dos atos que a lei tipifica como sendo litigância de má-fé ou como ato atentatório à dignidade da justiça. Nesses casos, a conduta ilícita é praticada de forma isolada, dentro de um processo individualmente considerado. A essas situações se pode chamar, genericamente, de litigância de má-fé.
Há, além disso, casos de litigância de massa, repetitiva, mas totalmente lícita. É o que se tem, por exemplo, naqueles casos em que ocorre um evento de grandes proporções e que atinge um número muito grande de vítimas (bastando lembrar, entre outros, das tragédias de Brumadinho e de Mariana). Nesses casos normalmente acontece de serem ajuizadas, de forma totalmente lícita, muitas demandas, contadas muitas vezes na casa dos milhares ou – como já ocorreu nos casos envolvendo expurgos inflacionários — dos milhões, e que são massificadas, repetitivas, por veicularem pretensões isomórficas (ou seja, formalmente idênticas).
Este fenômeno, absolutamente lícito, exige um sistema de gerenciamento de processos, a fim de evitar não só que se tenha um incremento evidentemente indesejável da morosidade judicial, mas também para assegurar alguma padronização decisória, evitando-se que casos análogos recebam decisões díspares. Mecanismos de padronização decisória, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, ou de cooperação judiciária, como a concentração de processos repetitivos, podem ser empregados para esse gerenciamento.
Há, porém, um terceiro fenômeno: o da litigância abusiva, de caráter predatório. Nesse caso, há um número grande de demandas ajuizadas (o que o aproxima da litigância de massa), mas de forma ilícita (o que o aproxima da litigância de má-fé). O fenômeno, porém, não se confunde com nenhum desses outro dois.
Na litigância abusiva, o que se vê é um grande número de demandas sendo ajuizadas, contra o mesmo réu ou contra poucos réus que integrem um mesmo segmento (como instituições financeiras, por exemplo), e normalmente pelo mesmo advogado ou por um pequeno grupo de advogados. As demandas aqui, porém, não são autênticas. O que se tem visto muitas vezes é o ajuizamento dessas demandas sem que o demandante sequer tenha notícia de que aquele processo se instaurou. Têm sido, por exemplo, empregados dados obtidos de forma ilícita (através do assim chamado vazamento de dados), em que se simula uma demanda na qual são empregados dados verdadeiros de pessoas que não sabem que aquelas demandas serão propostas. Empregam-se, às vezes, documentos falsos (como falsos comprovantes de residência, por exemplo), e falsas procurações (que, claro, dão poderes para receber e dar quitação), e se ajuízam aquelas muitas demandas na expectativa de que nem os réus, nem o Poder Judiciário, se darão conta do seu caráter predatório.
Há, porém, indícios dessa abusividade que devem ser observados. A formulação de requerimentos de gratuidade de justiça sem qualquer indicação concreta da situação de hipossuficiência do autor; o fato de as petições iniciais serem formalmente idênticas (só mudando os dados de qualificação das partes); a formulação de alegações muito genéricas; a indicação de um mesmo número de protocolo de atendimento para muitas pessoas diferentes, são apenas alguns dos indícios que podem ser observados. E a inteligência artificial pode ser muito útil na identificação desses indícios, como vem ocorrendo no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, através do emprego de uma inteligência artificial batizada de Bastião [1].
Vê-se, assim, que a litigância abusiva não se confunde com a litigância de má-fé, pois não é episódica, dentro de um processo, mas um fenômeno que se manifesta de modo massificado. E também não se confunde com a litigância de massa, repetitiva, pois esta é lícita, enquanto a litigância abusiva é ilícita.
Pois havendo indícios de litigância abusiva, incumbe ao juiz da causa determinar à parte autora que apresente mais documentos, com o objetivo de comprovar a autenticidade da postulação (Tema Repetitivo 1.198 do STJ). Faço, porém, uma crítica à tese que foi fixada pelo STJ. É que, a meu sentir, no caso de não ser demonstrada a autenticidade da postulação não deve haver extinção do processo por falta de interesse de agir. A meu ver, a questão se põe em um momento anterior da cognição judicial: deve-se considerar, aí, que falta um pressuposto processual de validade, já que a demanda não terá sido regularmente formulada. Seria o caso, então, de extinguir-se o processo sem resolução do mérito com base no artigo 485, IV, do CPC.
Ponto nevrálgico
Há, porém, um dado a considerar, e que me parece fundamental: é que, senão em todos, pelo menos na maioria dos casos, a litigância abusiva se manifesta através do emprego de procurações falsas. Deve-se considerar, então, que o advogado que ajuizou a demanda atuou sem procuração do demandante (e isso, claro, precisa ter ficado demonstrado, sendo importante a realização de diligências para essa verificação, como, por exemplo, determinar-se ao oficial de justiça que encontre pessoalmente o demandante e verifique se ele reconhece aquela procuração, ou que o demandante seja pessoalmente intimado a comparecer à sede do juízo para essa verificação). Pois se o advogado não tem procuração da parte, incide o disposto no artigo 104 do CPC, que prevê a possibilidade – de todo excepcional – de que um advogado postule sem procuração.
Pois quando isso ocorre, incumbe ao advogado, no prazo de 15 dias, exibir a procuração (artigo 104, § 1º). E no caso de não o fazer, conforme determina o artigo 104, § 2º, do CPC, os atos praticados pelo advogado serão reputados ineficazes em relação àquele em cujo nome tenha sido praticado, respondendo o advogado pelas despesas e por perdas e danos.
Como se vê, então, nesses casos deve haver a condenação do advogado responsável pelo ilícito ao pagamento das despesas processuais. Mas, além disso, o profissional da advocacia será também condenado a reparar perdas e danos. E aqui é preciso fazer uma distinção.
Em primeiro lugar, é preciso considerar a possibilidade de só se verificar o caráter abusivo da demanda depois de o réu já ter sido citado e ter se manifestado no processo. Neste caso, o réu terá direito a uma indenização pelos danos sofridos, os quais terão de ser liquidados nos mesmos autos.
Mas há que se considerar, também, que a litigância abusiva causa danos ao Poder Judiciário. Afinal, há aí uma movimentação não só desnecessária, mas abusiva, do serviço judiciário. Existe todo um custo necessário não só para a instauração e desenvolvimento dos processos, mas também para as diligências que são necessárias para a identificação do caráter abusivo da demanda. Além disso, a grande quantidade de processos que caracterizam a litigância abusiva acaba por gerar uma imensa perda de eficiência do serviço judiciário, uma vez que se gasta tempo e energia para cuidar de processos que nem deveriam existir, o que faz com que se tenha menos eficiência no desenvolvimento dos processos que se instauram licitamente.
Por isso, não tenho dúvida de que nesses casos se deve condenar o advogado que atuou de forma ilícita também a reparar os danos sofridos pelo Poder Judiciário, sendo admissível a liquidação da obrigação nos mesmos autos. E essa indenização a ser paga pelo advogado deverá reverter para os fundos do Poder Judiciário, previstos no artigo 97 do CPC.
Importa destacar que o aludido artigo 97 prevê que serão destinados a esses fundos as sanções pecuniárias processuais destinadas ao Poder Judiciário. Pois normalmente se pensa em sanção como punição, mas não é esta a melhor interpretação. Basta aqui lembrar da clássica advertência de Geraldo Ataliba:
“A sanção não é sempre e necessariamente um castigo. É mera consequência jurídica que se desencadeia (incide) no caso de ser desobedecido o mandamento principal da norma. É um preconceito que precisa ser dissipado – por flagrantemente anticientífico – a afirmação vulgar infelizmente repetida por alguns juristas, no sentido de que a sanção é castigo. Pode ser, algumas vezes. Não o é muitas vezes” [2].
Afinal, como ensina Maurício Benevides Filho, sanção é “consequência positiva ou negativa prevista em [lei] para determinado ato praticado por determinado indivíduo. Realizada certa ação ou omissão prevista na norma jurídica, a retribuição será a aplicação de uma sanção igualmente nela prevista” [3].
Assim, facilmente se percebe que, embora indenizar danos causados não seja propriamente uma punição (e aqui manifesto minha divergência em relação à teoria que reconhece uma função punitiva na responsabilidade civil, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro atual), é uma consequência prevista em lei para um determinado comportamento e, portanto, é uma sanção. Assim, inclui-se esta hipótese, também, no campo de incidência do artigo 97 do CPC.
Dizem que o bolso é o único ponto nevrálgico comum a todos os seres humanos. Quem sabe se começar a doer no bolso a litigância abusiva não acaba?
[1] Algumas informações podem ser obtidas, por exemplo, aqui
[2] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: RT, 1973, pág. 38.
[3] BENEVIDES FILHO, Maurício. O que é sanção? Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, vol. 34, n. 1, 2013, pág. 355.
Fonte: ConJUr – Breves considerações sobre litigância abusiva
(21) 9 7864-8108