Limites e exigências à luz do art. 14 do CDC.
Não sou fã de brocardos jurídicos, mas vou me corromper, neste específico tema, e utilizar um, apenas porque o encaixe traduz perfeitamente tudo o que tratarei neste modesto artigo.
“Quod non est in actis, non est in mundo.”
“O que não está nos autos, não está no mundo”.
Essa frase, embora de autoria duvidosa (geralmente atribuída à tradição jurídica medieval, por vezes referida como princípio de Chiovenda), realça a importância fundamental de que todos os fatos e provas relevantes devem ser devidamente apresentados e registrados no processo judicial para que possam ser considerados pelo juiz na sua decisão. A validade jurídica de um fato depende da sua existência formal no processo.
Digo que se não há a verdade, não há direito, porque presunção não é certeza, e incerteza não é justiça.
A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do CDC, e a responsabilidade objetiva do art. 14 formam pilares centrais da proteção consumerista. Todavia, a aplicação mecânica ou genérica da inversão – sobretudo nas demandas em que a parte autora não demonstra hipossuficiência probatória nem apresenta indícios mínimos do fato danoso – produz distorções processuais, fragiliza o contraditório e pode conduzir a decisões injustas.
O CDC nasceu para equilibrar relações entre consumidores e fornecedores, reconhecendo desigualdades estruturais. O art. 14 impõe responsabilidade objetiva ao fornecedor de serviços; o art. 6º, VIII, autoriza a inversão do ônus probatório em favor do consumidor quando houver verossimilhança da alegação ou hipossuficiência. Mas, esses instrumentos, firmo, não conferem licença para a inexigência probatória da parte autora. A prova é o mapa e a bússola do juiz; sem estes instrumentos, decisões podem perder o rumo e alcançar resultados injustos.
Fraciono as minhas ideias para melhor contextualizar os argumentos que defendo.
Os fundamentos normativos e a hermenêutica integrada.
Art. 14, CDC: Responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, com excludentes (culpa exclusiva do consumidor, culpa de terceiro, força maior).
Art. 6º, VIII, CDC: Previsão de inversão do ônus da prova, condicionada à verossimilhança da alegação ou à hipossuficiência do consumidor.
Integração com o CPC (arts. 373 e ss.): A distribuição do ônus da prova no processo civil permanece como regulação subsidiária; a inversão prevista no CDC exige motivação e delimitação.
Natureza e finalidade da inversão do ônus da prova.
Em análise muito simplista e objetiva, pode-se dizer que a inversão do ônus da prova intenta corrigir assimetrias informacionais e técnicas, possibilitando a efetividade da tutela quando a prova de fatos gravita sob o controle exclusivo do fornecedor. Aqui surge o ponto de inteligência do normativo, de hermenêutica e, sobretudo, relevância processual. Refiro-me evidentemente ao que denominamos “controle exclusivo ou absoluto do fornecedor”.
Nada mais óbvio do que a transferência do ônus ao que tem o domínio exclusiva e predominante da prova.
Há uma limitação, entretanto, de natureza excepcional e instrumental, já que não se pode substituir a exigência de condições mínimas da alegação e prova da parte autora.
Podemos dizer, analogicamente, que a inversão é uma ponte sobre o abismo informacional; ela só é segura quando ancorada em pilares firmes (indícios mínimos e motivação judicial).
O amadurecimento social e a necessária reavaliação da hipossuficiência.
Desde a promulgação do CDC houve uma evolução socioeconômica e informacional: maior acesso à internet, disponibilidade de informações comparativas, instrumentos de defesa do consumidor e práticas autorregulatórias. Esse amadurecimento legitima a crítica à aplicação automática da ideia de vulnerabilidade.
Mas, a conclusão de que a hipossuficiência deixou de existir é inadequada e precipitada. A vulnerabilidade prevista pelo CDC deve ser entendida de forma dinâmica e contextual: persiste quando há desigualdade de informação técnica, assimetria de dados (especialmente em ambientes digitais), incapacidade prática de compreender cláusulas complexas (leia-se complexas na essência) ou desigualdade de poder econômico (apenas quando causa evidente do desequilíbrio) e organizacional entre consumidor e fornecedor. E faço aqui um parêntese importante, porque o acesso à informação não equivale necessariamente à capacidade técnica de processá-la ou de obter provas que permaneçam sob controle exclusivo do fornecedor.
A hipossuficiência é um termômetro, não um selo: varia conforme circunstâncias concretas e deve ser demonstrada caso a caso.
Uma dessas premissas equivocadas está nas alegações vazias de fraude. Nota-se o uso estratégico, em alguns litígios, de alegações simplificadas de “golpe” ou fraude como meio de obter indenizações contra empresas, mesmo sem comprovação robusta.
E associada à transferência genérica do ônus da prova, tal prática pode tornar a inversão um instrumento distorcido, com efeitos sistêmicos danosos às instituições.
Um exemplo recente: REsp 2.215.907-SP (proc. eletron. 2025/0195436-1, julgado em 1º/9/25), no qual o STJ entendeu que, em fraudes por engenharia social como o golpe da “falsa central”, a responsabilidade do banco é afastada quando a fraude decorre de culpa exclusiva da vítima. O tribunal qualificou a entrega voluntária de dados sensíveis como “fortuito externo” que rompe o nexo causal, eximindo o banco, salvo demonstração de falha nos deveres de segurança ou de vazamento de dados pelo fornecedor. Esse precedente atua como contrapeso: a inversão pode ser necessária, mas o juiz não pode perder o rumo sem o mapa probatório mínimo. Um acerto decisório, portanto.
Problemas práticos e jurídicos decorrentes da aplicação excessiva.
Inversão automática por mero “status” de consumidor: Decisões que concedem inversão sem exame de indícios mínimos transformam o mecanismo em presunção de culpa.
Transferência desproporcional do ônus: Fornecedores são compelidos a produzir prova negativa ou impossível, afrontando a razoabilidade.
Fragilização do contraditório e da motivação judicial: Sentenças baseadas em provas unilaterais e em inversão genérica aumentam o risco de reforma e instabilidade.
Incentivo à litigiosidade e à prática probatória preguiçosa: Consumidores deixam de reunir documentos mínimos, confiando em inversão automática.
Dificuldade probatória em litígios tecnológicos/complexos: Tais situações demandam perícias e análise de dados; o juiz deve decidir com base no mapa probatório disponível antes de abandonar a rota. A situação ganha contornos mais complexos, embora desprezados, quando a ação é proposta no Juizado Especial Cível, tornando a posição da parte ré mais delicada e ingrata tecnicamente.
Impactos judiciais e socioeconômicos.
Segurança jurídica: Aplicação criteriosa reduz decisões contraditórias e reformas em instância superior.
Efetividade da tutela: Proteção ao consumidor preservada quando inversão for usada para viabilizar produção de prova fora de seu alcance.
Custo do litígio: Perícias e diligências elevam custos, mas melhoram a precisão decisória e evitam condenações fundadas em presunções frágeis.
Fragilidades jurídicas.
Ônus probatório e prova desproporcional – o CDC admite facilitação probatória, mas não suprime a necessidade de provar fatos constitutivos do direito; transferir integralmente ao fornecedor o encargo de provar ausência de falha, sem parâmetros técnicos, afronta o devido processo e a racionalidade probatória.
Interpretação extensiva do art. 14 sem analisar excludentes – o art. 14 admite excludentes (culpa exclusiva do consumidor, caso fortuito, terceiros); a decisão que não fundamenta adequadamente o afastamento desses excludentes é vulnerável.
Dever de cuidado indeterminado e insegurança jurídica – impor obrigação genérica de “atualização constante” vulnera previsibilidade; padrões técnicos competem ao regulador/legislador mais que à decisão casuística.
Insuficiente exame da proporcionalidade das medidas exigidas – fraudes por engenharia social demandam reconstituição factual e perícia especializada para fixar nexo causal.
Risco de dissociação de precedentes e instabilidade jurisprudencial – divergência dificulta planejamento institucional e previsibilidade.
Potencial afronta ao princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e à proporcionalidade da indenização – deve-se considerar culpa concorrente e dever de mitigação do dano.
E dentro dessas fragilidades acima apontadas, enxerga-se os perigos práticos e o risco de incentivos perversos. Responsabilizar com base em alegações genéricas e indícios frágeis cria incentivos ao oportunismo (moral hazard) e seleção adversa: usuários podem alegar fraude para reaver operações vantajosas. Do ponto de vista sistêmico, isso eleva litigiosidade, custos de averiguação e pressiona instituições a provisões e reembolsos indevidos, sem atacar as causas reais das fraudes.
Conclusão
A responsabilidade objetiva do art. 14 do CDC e a inversão do ônus da prova são instrumentos essenciais da proteção consumerista, mas exigem uso ponderado. A prova é o mapa e a bússola do juiz: decisões que abandonam tais instrumentos perdem a rota e arriscam injustiças com efeitos colaterais sócios econômicos. A inversão não suprime a necessidade de prova mínima; o consumidor deve apresentar indícios que abram a via probatória, e o juiz deve delimitar e justificar qualquer deslocamento do ônus. O alegado “amadurecimento” social não revoga a proteção, mas exige interpretação dinâmica da vulnerabilidade. O precedente do REsp 2.215.907-SP orienta que, quando a vítima voluntariamente entrega dados sensíveis, configura-se culpa exclusiva do consumidor/fortuito externo, afastando responsabilização do fornecedor, salvo prova de falha de segurança. Só com mapas claros (critérios) e bússolas confiáveis (motivação e prova mínima) se preserva o equilíbrio entre proteção do hipossuficiente e princípios constitucionais do processo, evitando que instrumento protetivo se converta em mecanismo de injustiça processual. Aplicar inversão sem critérios é como navegar sem bússola – corrige pouco e arrisca muito.

Márcio Aguiar
Sócio Fundador da Corbo, Aguiar & Waise Advogados. Especialista em Direito Empresarial. Ex-Diretor Jurídico da Câmara de Comércio Luso Brasileira. Co-Autor da Enciclopédia de Direito do Desporto.
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MARQUES, Cláudia Lima. Curso de Direito do Consumidor. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
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Fonte: Migalhas – Os excessos da inversão do ônus da prova nas ações de consumo
(21) 9 7864-8108