Métricas e governança multidisciplinar: Um framework operacional para advocacias full service e departamentos jurídicos corporativos.
Trago, neste artigo, porque fui levado recentemente à reflexão com algumas perguntas cujas respostas não estavam totalmente claras.
Talvez, no lugar de “claras”, melhor seja “organizadas” nas devidas prateleiras da gestão corporativa.
Gosto das metáforas quando escrevo e, devo dizer, até exagero na utilização delas, mas não consigo livrar-me dessa figura de linguagem comparativa.
E gosto das metáforas futebolísticas. Gosto, porque é um esporte que congrega dezenas de competências que são aplicáveis em todos os demais setores.
Vou citar, para dar fluência ao meu artigo, apenas uma dúzia das competências aplicadas no futebol, que podem igualmente coabitar no mundo dos negócios.
Trabalho em equipe;
Liderança;
Comunicação eficaz;
Tomada de decisão sob pressão;
Planejamento tático e estratégico;
Adaptação e flexibilidade;
Resiliência;
Disciplina e rotina de treino;
Análise de desempenho e uso de dados;
Gestão de talentos e formação;
Sincronização e timing;
Cultura de equipe e identidade.
Bom. Vamos lá para o mundo corporativo e uma avaliação dos dados.
Avaliar dados em uma advocacia full service ou em um departamento jurídico corporativo exige rigor técnico: métricas padronizadas frequentemente ocultam a complexidade operacional das diversas áreas e podem induzir a decisões errôneas quando extraídas sem estratificação adequada. Em escritórios e departamentos com núcleos heterogêneos, indicadores idênticos podem representar dinâmicas de trabalho, níveis de risco e custos completamente distintos – resultando em um “achismo qualificado”: dashboards elegantes, decisões mal fundamentadas.
Heterogeneidade da carteira (ou das demandas internas) e limitação das métricas simples
Comparar produtividade entre equipes que operam com grandes volumes homogêneos (contencioso de massa, compliance rotineiro) e aquelas que tratam dossiers complexos, clientes únicos ou trabalho estratégico é metodologicamente inadequado. Métricas unitárias (ex.: petições por advogado) ignoram variáveis críticas: complexidade técnica, tempo de investigação, número de stakeholders, grau de paralelismo de tarefas e sazonalidade processual. Nos departamentos jurídicos corporativos, “cliente” deve ser lido como área requisitante ou stakeholder interno, e as métricas devem incorporar impacto sobre negócio (risco financeiro, reputacional, decisões estratégicas).
Análise de pulverização como medida de dispersão operacional
Incorporar um índice de pulverização (dispersion index) torna a análise mais robusta. Medidas recomendadas:
Processos/demandas por cliente/área = total ÷ número de clientes ou áreas (analisar distribuição e aplicar Pareto).
Tarefas por tipo = proporção de prazos processuais, petições, consultoria, diligências.
Concentration Ratio (CRx) = % da carteira/demandas concentrada nos top X clientes/áreas.
Taxa de context switching = número médio de trocas de tema por profissional/dia.
Esses indicadores permitem ajustar comparativos e ponderar KPIs pela heterogeneidade da carteira ou do portfólio interno.
Aplicação de conceitos de engenharia e gestão de operações.
Trazer métricas e técnicas de gestão – engenharia de produção, operações e ciência de dados – eleva a qualidade das decisões:
Throughput e Lead Time: medir fluxo (entradas/saídas) e tempo total de processamento por tipo de tarefa.
Little’s Law: L=?W para estimar backlog e tempo médio de permanência quando aplicável.
Takt time e balanceamento de carga: calibrar metas de produção jurídica pela capacidade disponível.
Process mining e análise de logs: detectar variabilidade de fluxo, gargalos e rework.
Lean e Six Sigma: reduzir desperdícios (espera, retrabalho) e variabilidade de processos.
RPA/Automação e templates: aplicar automações onde a variabilidade é baixa; priorizar colaboração e gestão do conhecimento onde a pulverização é alta.
Gestão de prazos processuais e demandas internas (abordagem prática).
Para gestão efetiva de prazos e demandas, recomenda-se uma abordagem prática centrada em mensuração, priorização e buffers:
Classificar demandas por tipo e criticidade (ex.: crítico, alto, normal).
Medir chegadas e tempos médios de atendimento por categoria durante um período amostral (4-8 semanas).
Calibrar SLAs e buffers com base em tempos observados e percentis (ex.: 90º/95º percentil) para reduzir risco de violação.
Implementar regras claras de priorização e escalonamento alinhadas com stakeholders/board.
Usar process mining para identificar gargalos, rework e dependências externas que elevam tempo de atendimento.
Monitorar capacidade e utilização em dashboards que combinem volume, tempos médios e riscos de violação – evitando decisões baseadas apenas em contagens acumuladas.
O cuidado ao terceirizar para escritórios parceiros:
Ao deslocar demandas para escritórios parceiros é crucial segregar cuidadosamente ações de alto risco ou alta complexidade das tarefas de menor criticidade. Determinada ação – por valor em disputa, complexidade técnica ou exigência de recursos especializados – pode, isoladamente, comprometer toda a estratégia de custos e operacionalização se tratada como “mais um item” na esteira de terceirização. Estabeleça critérios formais de triagem (valor, risco, complexidade, SLA exigido), contratos e governance dedicados para os casos classificados como “alto risco/alto impacto”. Em termos práticos: não coloque o “tubarão” na mesma rede do “cardume de sardinhas” – esse único tubarão pode causar danos desproporcionais à operação das demais demandas.
Custo do contexto switching e o impacto na produtividade real.
Quantificar o custo do switching cognitivo é essencial:
Time tracking amostral para estimar tempo perdido por troca de contexto.
Registro de interrupções e análise da correlação com erros/retrabalho.
Ponderar KPIs com esse custo evita subdimensionamento e avaliações equivocadas.
Governança de indicadores e KPIs compostos
Indicadores justos exigem estratificação e composição:
KPIs compostos: tempo médio por tarefa ponderado por complexidade; throughput por tipo de atividade; SLA efetivo por perfil de cliente/área.
Segmentação de metas por padrão de carteira/padrão de demanda (massa, contencioso complexo, consultivo estratégico).
Dashboards multi-camada: camada 1 – KPIs agregados; camada 2 – índices de pulverização, concentração e complexidade; camada 3 – causas raiz (process mining).
Revisão periódica de KPIs e thresholds com participação multidisciplinar e stakeholders internos.
Aliança multidisciplinar: jurídico + gestão + engenharia + inovação + dados + TI
A eficiência exige uma governance team cross-functional:
Jurídicos: Definem criticidade técnica, riscos e prioridades legais.
Executivo de operações/engenharia de produção: Projetam fluxos, modelam capacidade, propõem inovações e calibram SLAs.
Cientistas de dados/BI: Estruturam métricas, pipelines, process mining e modelos preditivos.
TI/automação: Implementam RPA, integrações e captura automática de tempo/tarefa.
Essa aliança permite construir métricas significativas, evitar incentivos perversos e desenhar intervenções com evidência quantitativa.
Consequências de decisões embasadas em métricas isoladas
Avaliações e recompensas injustas;
Incentivos perversos (foco em tarefas de baixa complexidade);
Aumento de turnover e perda de know-how;
Subdimensionamento operacional e riscos processuais;
Investimentos mal orientados em tecnologia;
Perda de qualidade no atendimento ao cliente interno/externo.
Recomendações práticas e técnicas
Construir um índice de pulverização e incorporá-lo como filtro obrigatório nos relatórios.
Implementar time tracking mínimo e registros de tarefa com categorização padronizada para alimentar modelos de custo de contexto.
Aplicar process mining para identificar fluxo real, gargalos e impacto de políticas de prioridade.
Segmentar KPIs e metas por padrão de carteira/padrão de demanda; usar KPIs compostos que ponderem complexidade e impacto no negócio.
Estruturar um núcleo cross-functional permanente (jurídico, operações, engenharia, dados, TI e representantes das áreas requisitantes) para governança de métricas e projetos de eficiência.
Priorizar automação onde a variabilidade é baixa; investir em treinamento, gestão do conhecimento e ferramentas colaborativas onde a pulverização é alta.
Definir SLAs e buffers com base em dados observados e percentis (evitar metas puramente médias).
Conclusão:
Métricas sem estratificação e sem modelagem operacional acarretam riscos estratégicos e operacionais tanto em escritórios quanto em departamentos jurídicos. A combinação entre expertise jurídica e metodologias de gestão, engenharia de produção e ciência de dados transforma dados em decisões justas, acionáveis e escaláveis. Process mining, medição rigorosa, segregação criteriosa de casos terceirizados e governança multidisciplinar garantem que indicadores deixem de ser meras representações visuais e passem a orientar alocação de recursos, desenho de processos e políticas de desempenho sustentáveis.
__________________
Davenport, T. H., & Harris, J. G. (2007). Competing on Analytics: The New Science of Winning. Harvard Business Review Press.
George, M. L., Rowlands, D., Price, M., & Maxey, J. (2005). The Lean Six Sigma Pocket Toolbook. McGraw-Hill.
Hillier, F. S., & Lieberman, G. J. (2015). Introduction to Operations Research (10th ed.). McGraw-Hill.
Little, J. D. C. (1961). A proof for the queuing formula L = ?W. Operations Research, 9(3), 383-387.
Provost, F., & Fawcett, T. (2013). Data Science for Business. O’Reilly.
van der Aalst, W. M. P. (2016). Process Mining: Data Science in Action. Springer.
Womack, J. P., & Jones, D. T. (2003). Lean Thinking: Banish Waste and Create Wealth in Your Corporation. Free Press.
Willcocks, L. P., Lacity, M., & Craig, A. (2017). Robotic Process Automation: Strategic Guide (artigos e white papers).
Mark, G., Gudith, D., & Klocke, U. (2008). The cost of interrupted work: more speed and stress. Proceedings of the SIGCHI Conference.
Pashler, H. (1994). Dual-task interference in simple tasks: Data and theory. Psychological Bulletin.
Fontes institucionais e guias práticos
Corporate Legal Operations Consortium (CLOC). Guias e white papers sobre legal operations.
Association of Corporate Counsel (ACC). Materiais sobre governança, métricas e legal technology.
International Legal Technology Association (ILTA). Pesquisas e relatórios sobre tecnologia jurídica.
Relatórios e white papers de consultorias (McKinsey, BCG, Deloitte) sobre transformação digital e operações jurídicas.
Publicações em português (ConJur, OAB, ITS) sobre legal tech e gestão de escritórios.
Márcio Aguiar
Sócio Fundador da Corbo, Aguiar & Waise Advogados. Especialista em Direito Empresarial. Ex-Diretor Jurídico da Câmara de Comércio Luso Brasileira. Co-Autor da Enciclopédia de Direito do Desporto.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/440577/metricas-e-governanca-multidisciplinar-juridicos-corporativos