Nulidade da decisão baseada em “fundamento-surpresa” na visão do STJ

Dentre as novidades inseridas em nosso sistema processual pelo Código de Processo Civil em vigor, destaca-se aquela, prevista no artigo 10, a reforçar o princípio do contraditório, visto que veda ao juiz lastrear a sua decisão no denominado “fundamento-surpresa”, ainda que se trate de matéria cognoscível de ofício.

Conexos, ainda, com a mesma mens legislatoris, determinam o parágrafo único do artigo 493 que: “Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir”; e o parágrafo 5º do artigo 921: “O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição de que trata o § 4º e extinguir o processo”.

Fácil é verificar que essas regras estão definitivamente afinadas com a moderna ótica da ciência processual, que não admite, em hipótese alguma, a surpresa aos litigantes, decorrente de decisão escudada em ponto jurídico fundamental por eles não alvitrado. O tribunal deve, portanto, dar conhecimento prévio do rumo no qual o direito subjetivo encontra-se vulnerável, aproveitando apenas os fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição. Dessa forma, é evidente que os litigantes terão oportunidade de defender o seu direito e, sobretudo, influir na decisão judicial.

É certo que a liberdade outorgada ao tribunal, no que se refere à eleição da norma a ser aplicada, independentemente de ser ela invocada pelos litigantes, decorrente do aforismo iura novit curia, não dispensa a prévia manifestação das partes acerca da questão alvitrada pelo juiz, em inafastável homenagem ao princípio do contraditório.

Assevere-se, com a prestigiosa doutrina de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (O juiz e o princípio do contraditório, Revista do Advogado da AASP, n. 40, 1993), que esse cuidado do legislador não concerne apenas ao interesse das partes, mas se encontra também voltado ao próprio interesse público, na medida em que qualquer surpresa, qualquer ocorrência inesperada, torna mais distante a credibilidade da sociedade na administração da Justiça.

Verdadeiro dever de consulta do juiz, a cooperação aqui contemplada impõe ao tribunal conceder às partes a oportunidade de manifestação sobre eventual questão de fato ou de direito. O juiz, antes de se pronunciar sobre determinada matéria não debatida, ainda que seja de conhecimento oficioso, deve abrir prazo para prévia discussão pelas partes, evitando, desse modo, que seja proferida decisão calcada em “fundamento-surpresa”, circunstância que acarreta a nulidade do pronunciamento judicial por violação à garantia da ampla defesa.

Com o passar do tempo, essa questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça, sendo objeto de exegese evolutiva, cuja visão atual descortina-se alvissareira, dada a correta compreensão da nova regra em sua dimensão dinâmica.

Realmente, recente precedente da 3ª Turma, no julgamento do Recurso Especial 1.725.225-SP, da relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, houve por bem declarar a nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, uma vez que reconheceu a deserção do recurso de apelação, dada a insuficiência do preparo. A despeito de intimado o recorrente a complementá-lo, a determinação judicial não explicitou que o valor restante a recolher deveria ser monetariamente atualizado.

O voto condutor, de fato, assentou que:

“Desse modo, não tendo havido essa cautela do tribunal de origem, descabe aplicar a deserção que, configura verdadeira surpresa processual, na medida em que se decide a controvérsia acerca da complementação do preparo com base em critério não revelado anteriormente à parte prejudicada pela decisão.

O princípio da não surpresa foi contemplado no enunciado normativo do artigo 10 do Código de Processo Civil de 2015”.

Cumpre ainda registrar que tal importante julgado considerou aplicável esta novel regra legal a situação processual ocorrida ainda na vigência do código revogado, para o fim de prover o recurso especial, possibilitando ao recorrente, em caráter excepcional, “nova oportunidade de complementação do preparo da apelação, seguindo-se julgamento, como se entender de direito”.

Nesse mesmo sentido, mas diante de diferente hipótese, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento dos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Especial 1.394.902-MA, relatado pelo ministro Gurgel de Faria, declarou a nulidade de acórdão do próprio órgão fracionário, porquanto, a despeito de anunciado publicamente o adiamento do respectivo julgamento, o recurso acabou sendo apreciado e julgado na mesma sessão.

Com efeito, averbou-se que:

“É dever do órgão colegiado, a partir do momento em que decide adiar o julgamento de um processo, respeitar o ato de postergação, submetendo o feito aos regramentos previstos no Código de Processo Civil de 2015… Hipótese em que há nulidade no prosseguimento do julgamento, pois, com a informação prestada aos advogados de que a apresentação daquele feito seria adiada — o que provocou a saída dos patronos do plenário da 1ª Turma —, tornou-se sem efeito a intimação para aquela assentada”.

Sensível a essa relevante questão, em outro recente julgado da 2ª Turma, norteada por substancioso voto da lavra do ministro Herman Benjamin, restou patenteado no Recurso Especial 1.676.027-PR, que:

In casu, o acórdão recorrido decidiu o recurso de apelação da autora mediante fundamento original não cogitado, explícita ou implicitamente, pelas partes. Resolveu o tribunal de origem contrariar a sentença monocrática e julgar extinto o processo sem resolução do mérito por insuficiência de prova, sem que as partes tenham tido a oportunidade de exercitar sua influência na formação da convicção do julgador. Por tratar-se de resultado que não está previsto objetivamente no ordenamento jurídico nacional e que refoge ao desdobramento natural da controvérsia, considera-se insuscetível de pronunciamento com desatenção à regra da proibição da decisão surpresa, visto não terem as partes obrigação de prevê-lo ou advinhá-lo.

Deve o julgado ser anulado, com retorno dos autos à instância anterior para intimação das partes a se manifestarem sobre a possibilidade aventada pelo juízo no prazo de 5 (cinco) dias”.

Revelando ter perfeito domínio das novas tendências do processo civil, o Superior Tribunal de Justiça, como se observa, prestigia o modelo cooperativo de condução do litígio, instituído, de forma ampla e determinada, pelo vigente diploma processual.

Não é preciso salientar que, quando se consegue a participação concreta no iter de formação de um provimento decisório daqueles que serão os seus destinatários, obtém-se evidente legitimação da tutela do direito controvertido.

 

Fonte: Conjur