A Epidemia Esquizofrênica da Litigiosidade

Os números do Conselho Nacional de Justiça – CNJ denunciam uma doença em larga escala ― uma epidemia, para sermos mais exatos. Acumulam-se no Brasil 100.000.000 processos. Quase um processo por cada cidadão adulto brasileiro.

As doses medicamentosas ministradas pela enfermagem judiciária, na vã tentativa de aplacar o vírus da litigiosidade, movimentam mais de 68,4 bilhões de reais ao ano. Dessas cifras, 61 bilhões, ou seja, mais de 89% foi destinado à extensa folha de pagamento dos “profissionais da saúde forense”.

Cada processo tem um custo médio de R$ 686,00. A terapêutica de justiça adotada se revelou insustentável. Entrou em colapso. O surto epidêmico vivido no país atinge as raias da insanidade e seus índices lideram o amargo ranking dos maiores números de ações no mundo.     No tempo em que morei em Londres, aperfeiçoando-me em direito contratual, tive imensa dificuldade para explicar as incontáveis ações judiciais que povoam nosso adoecido organismo judiciário. Não entrava na cabeça do inglês que, por aqui no Brasil, tudo fosse judicializado. Lá, como na maior parte dos países europeus, o conflito judicial é o último e derradeiro estágio do litígio, após esgotadas todas as possibilidades de cura, seja pelo bom funcionamento do sistema imunológico de resolver as desavenças de forma amigável, seja pela ação interventiva de órgãos administrativos. Somente chega ao judiciário o conflito administrativamente insolúvel.

Já na atmosfera empesteada em que os brasileiros respiram, que parece ser a mesma que serve aos pulmões dos americanos, surgiu a peste do ajuizamento fácil. Altamente contagiosa, a mazela se hospedou na cultura nacional. Os anais médicos a chamam de hiperlitigiosidade.

O comichão que fomenta a judicialização dos conflitos foi inoculado à cidadania no mesmo período da redemocratização do Brasil. A consciência dos direitos se deturpou quando o acesso à Justiça foi franqueado, quando defensorias públicas se proliferaram, quando advogados acreditaram que a indenização obtida por seus clientes se converteria em fonte de riqueza.

Conforme Newton, em sua Terceira Lei, “toda ação tem uma reação”. No caso brasileiro, há uma cadeia de ações na mesma direção, pois toda condenação pecuniária estapafúrdia alimenta a falsa esperança de lucratividade. Embora haja uma tendência a estancar a volúpia indenizatória, os litígios judiciais somente foram encorajados pela descomunal hemorragia de mandados de pagamento expedidos em favor dos autores ― muitas vezes distribuindo altas quantias.

É preciso conter a judicialidade. Como? Deem aos litigantes o que precisam, e não o que querem. Resolvam as pendengas judiciais com mais lições morais e menos recursos monetários. Apliquem medidas coercitivas que não encham os bolsos, mas implantem uma nova cultura. Revertam o ciclo da onipotência do vulnerável e estabeleçam a primazia do equilíbrio como preceito do julgamento. A desgraça de um povo está em receber salário como correção de um equívoco. Se crimes não são punidos bonificando a vítima com salário, por que meros ilícitos civis implicam em responsabilidade que se converte em vários salários mínimos? A recompensa do litígio foi subvertida em remuneração. A consequência é a generalização da preguiça e da doença ― a epidemia esquizofrênica da litigiosidade, para sermos mais exatos.

Hoje, segundo estatísticas, uma nova ação é proposta a cada cinco segundos. O Estado é o maior paciente do Judiciário, despejando milhares e milhares de ações pela própria inoperância do sistema.

Enquanto não buscarmos uma reeducação preventiva e direcionada para evitar essas doenças, nossos hospitais judiciários continuarão crescendo, mas asfixiados e respirando por aparelhos.

 

Por Márcio Aguiar