O direito de autor é semanticamente deficitário e pode gerar injustiças

O direito de autor apresenta déficits de três distintas naturezas diretamente relacionados entre si: o déficit filosófico do direito de autor, o déficit semântico do direito de autor e o déficit de representatividade (ou de legitimidade).

Hoje tratarei somente do déficit semântico em consequência de saudáveis enfrentamentos que tive com terceiros.

1 – Os direitos “conexos”
Após a publicação de um artigo em que eu defendia a posição dos atores que sucessivamente vem sendo excluídos da consideração de criadores no processo artístico, fui alertado por uma atriz e diretora que estes seriam titulares somente de direitos conexos e não direitos de autor.

Do ponto de vista pragmático assiste razão à minha interlocutora e não coloco uma única vírgula no seu entendimento.

Ocorre, porém, que o direito de autor em toda a sua concepção precisa ser revisto como uma categoria que ostenta uma série de inconsistências semânticas, tais como “propriedade artística literária”, “direita morais de autor” e “direitos conexos”, entre outras.

É, portanto, necessário compreender que a expressão direita conexa se baseia numa ideia equivocada de aproximar aquele que traz um aporte criativo à obra, apesar de não ser o autor desta (lembrando que o denomino por“sujeito-criador”).

Ou seja, nomear por direito conexo é o mesmo que dizer “não-direito de autor”. Ora, o não-algo é evidentemente excluído mesmo quando se pretende atribuir alguns (outros) direitos ao excluído.

Curioso notar que a terminologia direita conexos é semanticamente falseada como expressão que pretende incluir titulares, e a bem da verdade exclui os intérpretes de uma série de direitos.

Por outro lado, inclui-se entre os titulares de direitos conexos as companhias fonográficas e as empresas de radiodifusão[3], que, por sua vez, não trazem nenhum aporte criativo à obra anteriormente criada.

Ou seja, ficam excluídos os que trazem um aporte à obra da condição de autores (de fato não o são) mas ficam incluídos numa categoria que em nada se relaciona aqueles que possuem direitos de natureza única e explicitamente comercial.

Ora, com isso, não pretendo apontar nenhuma sedimentação de direitos que exclua as companhias fonográficas ou empresas de radiodifusão da condição de titulares de direitos conexos. Não é esta a minha pretensão. Até porque se fosse, seria uma batalha perdida, pois os ordenamentos nacionais e internacionais moldam-se sobre a ideia destas duas distintas categorias de direitos: direito de autor e direitos conexos.

Contudo, não vejo nenhum inconveniente em afirmar que há uma exclusão dos intérpretes da condição criativa essencial e uma forçosa e falsa atribuição semântica de um direito aos que atuam como agentes ressonadores de obras, mas que não são criadores.

Ou seja, que o direito das companhias fonográficas e das empresas de radiodifusão deveria ostentar outro nome é evidente, ainda que eu não pretenda lhes saquear direitos conquistados ao longo dos anos (insisto antes de ser atacado).

Por outro lado, não faz sentido que intérpretes, principalmente no setor musical e audiovisual, não sejam titulares de alguns direitos exclusivos do catálogo autoral. É o caso do direito de acesso ao exemplar único de obra, previsto no artigo 24, VII da nossa lei, quando haja interpretações plasmadas sobre suportes físicos, desde que se tratem de exemplares únicos das obras ou interpretações. Não houvesse a exclusão, tal direito seria garantido.

Contudo, a mais grave das distinções se faz exatamente no setor audiovisual. As leis nacionais, em geral, atribuem a condição de autor da obra audiovisual o diretor, o roteirista ou argumentista e ao compositor da trilha sonora composta especificamente para tal obra. E o ator, que normalmente é a figura com maior impacto nas obras desta natureza, resta excluída da condição de autor.

Insisto, não pretendo modificar ou romper com a lógica do sistema nem propor uma revolução sobre o sentido equivocado das expressões do direito de autor. Mas como doutrinador, não me cabe outra função que não elogiar os terrenos corretamente semeados e criticar os desvios semânticos. Pois o déficit semântico, o desvio lógico estrutural neste caso é fundamental e prejudica toda a categoria dos intérpretes do setor audiovisual pela “não-atribuição” de direitos.

Por outro lado, há outro déficit decorrente do fato de que na interpretação por parte de atores e atrizes há evidentes composições de personagens que sequer foram imaginados pelos escritores das obras nem estabelecidos pelos diretores. Do ponto de vista do processo criativo, portanto, não restam dúvidas de que o ator deve ser considerado um criador e deveria repetir esta ideia à exaustão, não para modificar o sistema – pois de fato não irá conseguir – mas ao menos para se convencer de sua condição criativa.

2 – Os direitos “morais”
Dizer que a terminologia direitos morais é somente inadequada é quase um elogio. Trata-se de expressão importada da terminologia francesa que possui significado bem mais amplo do que o termo “moral” em língua portuguesa.

Por outro lado, a expressão direitos morais, importa em um equívoco de interpretação a contrario sensu. Sendo tais direitos de natureza “moral” , haveria, portanto, uma “superioridade moral” sobre os direitos de natureza patrimonial. Como se direitos patrimoniais fossem naturalmente “imorais” ou “menos morais”. Evidentemente não é esta a realidade dos fatos.

Pois bem. Discutindo sobre o caso de uma conhecida apresentadora de TV que requereu a retirada do mercado de obras das quais se arrependeu de ter participado (como atriz), surgiu a questão sobre a superioridade intrínseca dos denominados direitos morais.

Enquanto um colega afirmava que a proteção de sua integridade moral seria inquestionável, outro afirmava que não havia a menor possibilidade de retirada do mercado de obras que contivesse a sua interpretação, pois o mercado e os consumidores não poderiam estar submetidos a arrependimentos por parte de artistas que tenham “mudado de postura” no decorrer da carreira.

Enquanto o defensor da apresentadora indicava o artigo 92 da Lei 9610/98, o outro dizia que o mercado artístico não poderia se submeter a meras modificações de humor!

Calma prezados!

No citado caso, uma interpretação conduzia à possibilidade de arrependimento por parte da então atriz por conta dos resultados estéticos. Deveria, porém, haver ofensa à integridade da interpretação.

Por outro lado, poderia ser também interpretado que o direito se aplicaria somente se houvesse o que a parte final do artigo 92 determina, ou seja: se a interpretação fosse desfigurada.

A interpretação era íntegra, e, portanto, repousava a discussão sobre a simples possibilidade de arrependimento decorrente da violação da integridade.

Ao fim e ao cabo, o que o embate trouxe à superfície foi uma constante discussão entre os autoralistas quanto a uma eventual superioridade dos direitos morais e os direitos de natureza patrimonial.

O ordenamento brasileiro, como os demais voltados ao sistema herdeiro dodroit d’ auteur francês, valoriza os direitos pessoais levando em conta que o beneficiário do direito de autor (e obviamente dos direitos conexos) deve ser protegido na condição de “sujeito-criador” (expressão que prefiro utilizar) e como destinatário principal de tal catálogo de direitos.

Não digo com isto que os demais partícipes do processo de transformação de obras em produtos culturais não mereçam a proteção legal, obviamente. Se assim fosse, a chamada “indústria cultural” sofreria altos reveses. Os direitos dos editores literários (que em geral são cessionários de obras literárias ou licenciados por meio de contratos de edição), as companhias fonográficas (detentoras de direitos conexos específicos) e as produtoras de audiovisual (que são cessionárias de direitos de autor e conexos) são garantidos na lei, mas submetidos a alguns riscos neste particular negócio.

Assim, os sujeitos-criadores, em muitas circunstâncias, poderiam fazer uso de direitos que a lei lhe atribui, quando houvesse violações de valores extra-econômicos.

Não digo com isto que o caso da apresentadora deveria ser decidido inquestionavelmente a seu favor. Até porque advogados não podem construir pareceres sem verificar os processos ou casos à exaustão (ufa, escapei!).

Por outro lado, é evidente que há circunstâncias nas quais direitos de natureza pessoal elevam-se em um grau de relativa superioridade quando confrontados com direitos de natureza patrimonial.

Veja-se por quê. Os direitos patrimoniais da seara do direito de autor são a resposta jurídica para atos de exploração que o direito viu por bem regular por meio de práticas de mercado. A lógica inerente ao direito de reprodução, o mais clássico destes direitos e herdeiro dos antigos privilégios de impressão, depois foi sendo transformada para ser aplicada a outros direitos de natureza patrimonial, como é o caso do direito de execução pública musical, direito de colocação à disposição da obra, entre outros. Além disso, a própria consolidação de direitos conexos aos produtores fonográficos e às empresas de radiodifusão contribui para gerar certa segurança no mercado pela atribuição de direitos conexos (lembram: péssima terminologia!).

Ocorre que a segurança jurídica no setor da cultura não é tal evidente quanto em outros. Aliás, também na transferência de bens imóveis pode haver reveses aos investidor, que pode possuir propriedades que sofram usucapião ou desapropriação, o que obviamente influencia na análise de segurança do mercado investidor.

Os agentes do mercado artístico, portanto, deve compreender que há segurança jurídica nas suas atividades, nos contratos firmados e nos direitos que lhes são aplicados, mas o destinatário fundamental e primeiro do direito de autor continua sendo – e assim será sempre – o sujeito-criador, compreendido neste o autor e o intérprete, o que interpreta o mundo à sua volta e o transforma em algo palatável e suscetível de percepção pelos sentidos.

Por isto, o direito de integridade pode ser confrontado, por um intérprete ou por um autor, perante uma empresa de radiodifusão, uma produtora fonográfica ou qualquer outra agente que atue na seara transformadora de obras e interpretações em produtos. Enquanto as empresas protegem os produtos e, com isto garantem seu mercado, os criadores protegem a sua criação a sua interpretação e, com isso garantem a continuidade da dignidade do criador.

Um sujeito-criador pode, portanto, arrepender-se de seus passado ou evitar violações de sua dignidade no presente e no futuro, pois o que fica para a história não são os agentes transformadores em produtos, mas os criadores. Ou, afinal, lembramos do editor de Balzac em detrimento de Balzac? Ou da gravadora de João Gilberto em detrimento de João Gilberto? O que fica para a história? E, portanto, o que pode ficar maculado pela história?

Por tudo isso, a possibilidade de confrontar direitos patrimoniais por meio de direitos pessoais de autor é, no mínimo, bastante razoável, pois não fosse assim, as leis não as caracterizaria como direitos irrenunciáveis e inalienáveis.

3 – O direito “de sequência”
A questão referente ao direito de sequência, devo admitir, não é tanto da ordem de uma semântica altamente deficitária. Este direito poderia (e pode) assim ser chamado (é denominado em francês droit de suite), sendo certo porém que nomeá-lo por direito sobre a revenda, ou direito de revenda seria mais adequado.

Esta inadequação terminológica, porém, serve de suporte para que alguns participantes do mercado não compreendam a sua natureza protetiva de participação econômica do autor de obras de artes plásticas. Por isso, talvez a confusão, aliada também a uma relativa dose de má fé.

Pois um investidor em obras de artes plásticas revelou que o direito de sequência seria uma aberração do mercado, considerando que em nenhum outro se pode cobrar pela revenda de produtos ou obras. Dizia o Sr. Investidor que não se pode tratar quadros (por exemplo) de modo diferente de carros ou outros bens que sejam suscetíveis ao direito de propriedade.

Pois digo ao Sr. Investidor que lamento a sua posição e lhe explico o direito de sequência.

É um direito típico do mercado de artes plásticas. Promove uma participação econômica ao artista pela revenda da obra. Segundo as leis nacionais, como a nossa, deve ser de natureza irrenunciável e inalienável. Ou seja, mesmo que ostente um valor e uma justificativa econômica, este valor econômico precisa ser garantido, considerando um simples fato: o sujeito-criador neste caso ostenta uma posição de inferioridade negocial perante aqueles agentes do mercado que permitem a circulação da obra.

Ou seja, marchands, investidores, galeristas, leiloeiros, salvo raríssimas exceções, irão preferir não destinar parte do lucro pela revenda da obra ao sujeito-criador ou a seus herdeiros. É uma questão de ordem econômica. Mas também o é compreender que o pintor poderia, muitas vezes, obter uma vida mais digna, especialmente quando alcance mais idade e não tenha, por exemplo, condições de pintar. Degas, quando octogenário, segundo se diz, teria visto obras suas vendidas pelo valor de quase meio milhão de francos. As mesmas obras que teriam sido vendidas por meros quinhentos francos.

Portanto, diferentemente do que se diz,o direito de sequência não imobilizaria o mercado pois os valores em geral são baixos e somente contribuem para se destinar um complemento digno para vida do artista ou seus herdeiros.

Por isso, Sr. Investidor, se o senhor pretende inserir-se em um mercado no qual não tenha que pagar um direito justo que seja destinado ao sujeito-criador da obra ou seus herdeiros, compre imóveis, carros antigos, terras, mas não obras de artes plásticas. Será melhor para todos.

Fonte: Conjur