Justiça nega pedidos de danos morais considerados absurdos

Advogado Luís Lobo: juizados especiais atraem consumidores aventureiros

A Justiça tem colecionado pedidos de indenização por danos morais considerados absurdos. Um casal decidiu processar uma pizzaria depois de um deles apertar uma bisnaga de catchup e sujar sua camisa. Outro consumidor que quase chegou a agredir um caixa de uma rede de fast food que se recusou a limpar uma mesa da praça de alimentação também resolveu ingressar com ação. E uma paciente que teve sua guia de exames com a data vencida recusada pelo laboratório achou necessário pedir uma reparação. Mas como era de se esperar, todos perderam.

Pedidos sem embasamento passaram a ser mais comuns depois da implantação, em 1995, dos Juizados Especiais Estaduais, segundo o advogado Luís Lobo, sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff. Para o advogado da área do consumidor, o que incentiva é a facilidade para o ajuizamento de ações de até 20 salários mínimos (R$ 14,48 mil). Isso porque não há necessidade de contratar um advogado, nem de recolher custas processuais e não se corre o risco de ter que pagar honorários para a outra parte em caso de perda.

“Essas peculiaridades têm causado uma corrida enorme aos juizados especiais e atrai aqueles consumidores considerados aventureiros, que entram com teses teratológicas na esperança de ganhar alguma coisa”, diz Lobo. Segundo o advogado, os valores das condenações por danos morais, muitas vezes desproporcionais, também são um incentivo. “Em casos corriqueiros, a Justiça já concede R$ 5 mil ou R$ 8 mil de indenização.”

Em casos extremos, quando entende que houve má intenção, o juiz acaba condenando a parte por litigância de má-fé (verConsumidores são condenados por má-fé). Mas essas decisões ainda são raras no Judiciário, segundo advogados, diante da crescente demanda de pedidos descabidos.

Ao analisar o caso da pizzaria, a juíza Luzia do Socorro Silva dos Santos, do 1º Gabinete do Juizado do Consumidor do Pará, não conseguiu entender como o fato de uma bisnaga de catchup ter estourado pode “causar danos em alguém de qualquer espécie”. “Por mais que a magistrada se esforce, não consegue perceber, captar, vislumbrar ou sequer imaginar como os fatos narrados podem gerar um dano moral a ser quantificado em R$ 7,6 mil, como pretende a autora”, diz na decisão.

No caso do consumidor que quase agrediu um caixa de uma rede de fast food, a juíza substituta paraense Renata Guerreiro Milhomem de Miranda também considerou a ação descabida. “O tumulto, o constrangimento, as cenas de violência não foram causados por funcionários dos réus, mas sim pelo próprio autor, pois as testemunhas ouvidas são unísssonas em afirmar que as agressões verbais foram proferidas pelo reclamante, o qual não se conformou em aguardar a chegada de um servente para a limpeza da mesa”, afirma a magistrada, que extinguiu a ação, sem custas e despesas processuais, como assegura a lei dos juizados especiais.

Para o advogado Gustavo Viseu, do Viseu Advogados, houve um aumento nos últimos dois anos de processos ajuizados pelos chamados consumidores oportunistas, que pleiteiam danos morais por “situações bizarras ou por motivos fúteis”. “Felizmente, o Judiciário está atento e tem rechaçado essas iniciativas levianas”, diz.

Segundo Viseu, esse aumento decorre, em primeiro lugar, do crescimento do consumo, com o surgimento de novos e inexperientes consumidores. E, em segundo lugar, pelo desenvolvimento e expansão dos órgãos de defesa do consumidor. “Esses dois fatores aliados criaram uma indústria de indenizações. Consequentemente surgiram os oportunistas buscando vantagens indevidas.”

Apesar de crescente, os casos de pedidos descabidos ainda são minoria, segundo o professor de direito do consumidor da Universidade Mackenzie, Bruno Bóris. E são incentivados principalmente pelo fato de não se precisar contratar um advogado para ajuizar causas de até 20 salários mínimos. “Quando essa pessoa ganha uma vez na Justiça, sem ter muita razão, ela percebe que pode fazer um dinheiro extra com essas ações”, diz Bóris. Segundo o advogado, o consumidor se sente protegido pelo sistema judicial “e acaba por extrapolar”.

Para advogados, o Judiciário tem sido cauteloso na aplicação de multa por litigância de má-fé. “Eu até entendo que há o receio de que haja uma restrição no acesso à Justiça. Mas nos casos em que a má fé for evidente, a punição tem que ser exemplar”, afirma Bóris. Para Luís Lobo, essas condenações também devem determinar o pagamento de custas e honorários advocatícios da parte contrária, o que inibiria aventureiros.

Com a avalanche de ações nos juizados especiais, consumidores têm preferido levar seus casos para a Justiça comum que, em alguns locais, tem sido mais rápida. “Os juizados estão congestionados. Eu mesmo tenho audiência de conciliação aqui no Estado do Pará, onde atuo, marcada para 2017”, diz Lobo.

Um dos pedidos considerados absurdos foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). No caso, a cliente de um laboratório alegava ter sido constrangida ao ter sua guia de exames recusada em público. Para o relator, desembargador Sebastião Flávio, porém, a sentença já tinha corretamente negado a indenização. “Até porque a apelada nada mais fez do que exercer o legítimo direito de recusar a guia de solicitação de exame já vencida”, afirma em seu voto.

Consumidores são condenados por má-fé

A Justiça começou a condenar consumidores mal intencionados que entraram com ações contra empresas sem terem sido realmente lesados. As sentenças, apesar de raras, devem inibir a prática, segundo advogados da área.

Em um caso julgado pelo Juizado Especial Cível de Paulínia, na região de Campinas (SP), o juiz condenou um consumidor que entrou com ação contra um banco. Ele alegou que apareceu na fatura de seu cartão de crédito uma cobrança de uma compra que não teria feito. Eram 12 parcelas no valor de R$ 241,39.

Ao analisar o caso, o juiz levou em consideração que o banco comprovou documentalmente que a cobrança, feita equivocadamente, foi estornada já no primeiro mês. ” Evidente, portanto, que o autor omitiu premeditadamente as faturas anteriores às que foram apresentadas, visando obter vantagem indevida, sendo caracterizada a sua litigância de má-fé”, diz a decisão, que impôs multa de 1% do valor da causa ao consumidor. Ainda cabe recurso.

Mas mesmo diante de provas, alguns juízes preferem não condenar consumidores por litigância de má-fé. Em um caso julgado recentemente no Juizado Especial do Rio de Janeiro, a consumidora entrou na Justiça com a alegação de que não teria contratado título de capitalização e que, por essa razão, deveria ser indenizada por danos morais, materiais e lucros cessantes. Porém, por meio de uma gravação, o fornecedor demonstrou que ela contratou e reconheceu as condições expressas do contrato.

“Os pedidos devem ser julgados improcedentes. Afinal, através do áudio apresentado pela ré, cujos termos não foram impugnados na audiência de conciliação, instrução e julgamento, verificou-se que a autora efetivamente contratou os títulos de capitalização contestados na inicial, tendo sido, inclusive, devidamente esclarecida acerca das condições de negócio”, afirma a sentença. Apesar das provas, o juiz não condenou por litigância de má-fé.

Segundo o professor de direito do consumidor da Universidade Mackenzie, Bruno Bóris, em ambos os casos, “é clara a improcedência da ação”. “Há consumidores que procuram o Judiciário para buscar valores sem justo motivo”, diz.

De acordo com Bóris, ainda são poucas as condenações por má-fé. Até porque as empresas têm dificuldades para reunir provas, diante das inúmeras operações que efetuam.

Para o advogado Luís Lobo, sócio do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff, a Justiça tem que condenar mais os consumidores que atuam de má-fé “para inibir essas aventuras no Judiciário”.

Fonte: Valor Econômico